

As origens são antigas e envoltas em algum mistério, muito provavelmente pré-cristãs. Certo é que esta tradição está fortemente ligada à comunidade ribeirinha e à formação do território que hoje em dia constitui a cidade de Gaia.
No primeiro domingo depois do dia 10 de janeiro, o São Gonçalo, acompanhado por São Cristóvão e por São Roque, desfilam pelas ruas em proteção não só dos homens e mulheres do rio e do mar, de quem são santos protetores, como de toda a comunidade gaiense, que continua fervorosamente a afirmar que "E ele é nosso. E é, é, é!", sobrepondo-se ao clamor dos bombos da "Nova Comissão do São Gonçalo da Rasa", dos "Mareantes do Rio Douro" e da "Associação de São Gonçalo Antiga da Rasa", guardiões das cabeças dos santos e da memória desta tradição milenar.
Este ano, os desfiles têm início às 8h00, estando prevista uma passagem pela PraÇa (Centro Cívico) entre as 15h00 e as 16h00, concentrando-se a partir das 17h00 na Igreja de Mafamude.
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Cabeça de São Cristóvão (Coleção Marciano Azuaga – Solar Condes de Resende)
Todos os anos, em janeiro, realiza-se em Vila Nova de Gaia a festa de São Gonçalo, no primeiro domingo após o dia 10, dia em que o Santo é celebrado pelo calendário litúrgico. Esta festa encontra raízes no mundo Clássico, nas festividades que em janeiro se dedicavam a diversas divindades do panteão Greco-Romano, como Dionísio e Jano. Com o advento do Cristianismo, estas e outras celebrações de âmbito religioso foram reconfiguradas, substituindo-se o culto clássico por devoções cristãs, processo que acompanhou a fixação dos cultos cristãos pelo território, mediante as particularidades de cada lugar.
Assim se compreende que na zona ribeirinha de Vila Nova de Gaia, durante a Idade Média, se tenha fixado o culto a São Pedro Gonçalves, santo galego protetor dos homens do mar, que no séc. XVII viria a ser suplantado pela popularidade do culto a São Gonçalo de Amarante, seu semelhante devocional e português. Contudo, também as devoções de São Roque e São Cristóvão se vieram associar a esta festa: o primeiro, pela proteção que velava sobre surtos de peste, que maioritariamente assolavam cidades portuárias; o segundo, invocado por viajantes e, sobretudo, barqueiros, que asseguravam a travessia entre margens de rios.
A lenda de São Cristóvão dá-nos conta de um homem canaanita que teria vivido no séc. III, dotado de tamanho e força sobre-humanos. Convertido ao Cristianismo, mas achando-se incapaz de adotar uma vida contemplativa, procurou servir Cristo através das suas capacidades, ajudando viajantes na travessia entre as margens de um rio perigoso. Numa dessas passagens, transportou uma criança que ficava progressivamente mais pesada, quase afogando-o. No final da travessia, a criança revelou-se-lhe como Cristo, despertando-lhe a vontade evangelizadora que viria a ditar a sua perseguição e martírio na Lícia. Iconograficamente, representa-se conforme a lenda, um Gigante de barba com o Menino às costas e por vezes com um bastão; contudo, por vezes, apresenta-se também com a inusitada representação cinocéfala, fruto da tradição de fontes antigas que atribuíam às zonas limítrofes do mundo conhecido, sobretudo no Oriente, estranhas raças híbridas, das quais uma das mais recorrentes a de homens com cabeça de cão.
Ainda hoje são os Mareantes do Rio Douro que transportam a cabeça de São Cristóvão até à igreja de Mafamude (da mesma invocação), acompanhada pela imagem de São Gonçalo e por um romeiro vestido de São Roque, local onde se encontram com as Comissões Velha e Nova da Rasa. O momento é marcado pelo ritual de entrada na igreja, com a cabeça de São Cristóvão voltada para a porta, seguindo-se as orações e ofertas no altar do Santo.
A imagem que atualmente se encontra em exposição no Solar Condes de Resende não terá cumprido a tradição, pelo que ficou retida na igreja previamente a 1909, ano em que foi doada ao Museu Municipal Azuaga por Bernardo Lucas, advogado, figura cimeira da Educação em Gaia e, a nível nacional, da ciência forense. Em madeira policromada, esta imagem poderá ter sido, originalmente, uma peça de ornamentação naval, atividade com grande representatividade nos estaleiros gaienses, de que se destacou na segunda metade de Oitocentos a oficina de Manuel da Fonseca Pinto, Professor de Escultura e Diretor da Academia de Belas Artes do Porto, posteriormente assumida por João da Afonseca Lapa, escultor renomado de Vila do Conde. Contudo, a cabeça de São Cristóvão terá assumido formas diversas ao longo dos tempos, bastando para isso recuperar as memórias de infância de Diogo de Macedo, que recordando o ambiente festivo do São Gonçalo, não esquecia a «caraça» de São Cristóvão, em faiança, envernizada.
Solar Condes de Resende
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QUEIRÓS, Eça de; MIMOSO, Anabela; GUIMARÃES, J. A. Gonçalves; TEDIM, José Manuel (2006). S. Cristóvão. Vila Nova de Gaia: Gailivro.